No decorrer da vida, somos convocadas a vivenciar inúmeras transformações. Algumas vezes, esse convite chega com delicadeza, mexendo apenas em algumas das nossas camadas. Outras vezes, chega de forma tão impactante que pode nos revirar ao avesso.
A maternidade é uma dessas metamorfoses, quiçá, a mais intensa para a mulher, e também
para a sua família, especialmente na contemporaneidade.
Ainda durante a gestação, a gestante depara-se com o desconhecido, com a sua história, com o seu corpo, seus medos, sombras, dores, fragilidades e potências; com todas as nuances que atravessam os seus relacionamentos; com todas as dificuldades que se fazem presentes em nosso modelo de assistência à saúde; com uma certa concepção de ‘maternagem’, de mãe, de pai e de família. Contudo, os frutos desse encontro passam, muitas vezes, e por diversos fatores (históricos, culturais, científicos, econômicos e sociais) despercebidos.
Com o nascimento do bebê, tudo isso vem, inevitavelmente, à tona e ela vive a experiência subjetiva que chamamos de puerpério.
Vivencia a maior fusão emocional já experimentada, mais algumas bruscas alterações hormonais, a privação de sono, a necessidade de lidar com um cenário que não raramente é diferente da condição planejada e desejada; e inicia um intenso ritual de passagem: não é mais e ainda não é , deixa de ser a filha para ocupar o lugar de filha e de mãe , deixa de ser a mulher esposa/companheira para ser a mulher esposa/companheira e mãe , deixa de ser a mulher profissional para ser a mulher, profissional e mãe . Sendo sacudida por todas as questões que permeiam tal dinâmica e relações, essa mulher em transmutação vive, na carne, toda a ambivalência e força desse processo, assim como o desafio diário de exercer esses múltiplos papeis.
Sujeita à invisibilidade dessa transformação, a silenciar e a guardar a sete chaves as reverberações do processo em curso, ou a ter tais reverberações lidas, predominantemente,
a partir do viés patologizante, essa mulher-metamorfose tem chegado aos serviços de
saúde.
Chama atenção o grau de sofrimento vivido por essa mulher. O quanto, como sujeito social que é, é fortemente atravessada pelos discursos e práticas culturais, científicas e socioeconômicas que sustentam o olhar naturalista e romantizado que nossa sociedade ainda nutre sobre a maternidade. Elas reproduzem esse olhar, pessoalizando em suas questões/vivências todas as modulações desse ideal materno fabricado.
Atuando junto a essa mulher, notamos que podemos contribuir sobremaneira para a
construção de maneiras singulares, saudáveis e leves de experimentar as transformações e
desafios trazidos pela maternidade. Não é simples, mas é possível, desde que exerçamos
uma prática profissional interventiva empática, cuidadosa, respeitosa e eticamente
conectada com o nosso papel enquanto agentes produtores de saúde e bem-estar; uma
prática capaz de viabilizar conhecimento acerca dos aspectos fundantes do nosso modo de
viver e existir, assim como da maneira como cada uma dar voz aos diversos fatores
emocionais envolvidos no tentar, no gestar, no parir e no renascer.
Todavia, percebemos, ainda, especialmente quando consideramos os casos em que já há um processo de adoecimento em curso, o quanto precisamos, igualmente, nos refazer enquanto profissionais de cuidado. O quanto precisamos nos desprender do viés intervencionista e tecer, também, práticas preventivas e educativas para produzirmos outros caminhos para a produção de vivências maternas mais sadias.
Mobilizadas a desenvolver um trabalho com esse caráter e intuito, temos apostado no que temos nomeado de “preparação”. Essa preparação não consiste, evidentemente, na construção de receitas, no controle ou na esquiva do que serão convidados a viver, a mulher e o homem que se transfiguram, dia a dia, em mãe e em pai, a família que ganha tons e dinâmicas inéditas.
Mas, sim, no movimento de despertar, de se abrir; de se disponibilizar para conhecer e compreender os diversos fatores que atravessam a vivência da maternidade e da paternidade, bem como os aspectos emocionais que permearão essa experiência; de se revisitar, despir-se dos padrões e ideais já produzidos e construir maneiras próprias e mais saudáveis de viver essa intensa experiência.
É nesse lugar de disponibilidade para tecer novos olhares, novos aprendizados, novos fazeres e horizontes sobre a maternidade e sobre o papel da Psicologia no campo da perinatalidade que o “Maternidade com mais Vida” se situa. Uma zona de construção e de reconstrução contínua da produção de cuidado e do nosso fazer profissional. Um lugar que anseia e busca contribuir com a produção de um modelo de assistência à saúde mais humanizado e comprometido com o seu papel político e ético. E é deste ponto que convidamos você a dialogar sobre o assunto.
Por: Beatriz Fonseca, ex-aluna do Curso Psicologia do Puerpério e uma das psicólogas
idealizadoras do @maternidadecommaisvida / www.maternidadecommaisvida.com.br
Imagem: goldenboobiesproject